CURSOS


A Linguagem do Silêncio: Psicologia e Surdez
Minicurso ministrado pelo psicólogo clínico Paulo Cesar da Silva Gonçalves no I Workshop de Libras promovido pelo Gpesse-Grupo de Pesquisa e Estudos Surrdos da UFS- Universidade Federal de Sergipe, no dia 20 de setembro de 2011

1.A história humana revela conflitos no processo de compreensão do fenômeno da surdez, considerada ora como maldição, loucura, aberração, ou como patologia congênita ou adquirida.
Desde 2002 a Língua Brasileira de Sinais-Libras é reconhecida por lei federal como língua oficial dos surdos, e as políticas inclusivas têm ensejado o aperfeiçoamento do debate em torno da educação e integração social do surdo.
Diante de desafio tão intrigante e ao mesmo tempo fascinante, entendemos que o atendimento psicológico à pessoa surda, praticamente inexistente no Brasil, é o caminho que pode abrir as portas para o mundo ainda inexplorado do surdo e de infinitas possibilidades.

2.Breve história da surdez
- Moisés(1500 a.C): “ não se deve maldizer os surdos(...)”
- Aristóteles (384-322 a.C): o surdo como um ser incompetente, destituído da capacidade de pensar.
- Roma antiga: os surdos eram considerados retardados mentais e privados de todos os direitos legais.
- Idade Média (637 d.C): Bispo John de Bervely ensinou um surdo a falar, fato então considerado um milagre.
- Juan Pablo Bonet(1579-1633): Primeiro alfabeto manual e uma língua de sinais.
- Jacob Rodrigues Pereira(1715-1780) e Samuel Heinicke(1723-1790): surge o movimento oralista na Europa, defendendo a primazia do ensino da fala ao surdo.
- Abade Charles L`Epée (1712-1789): primeira escola para surdos, o Instituto Nacional para Surdos, em Paris.
- Thomas Gallaudet (1787-1851) funda, com Laurent Clerc, a primeira escola pública para surdos, em Connecticut (1817).
- 1864: Edward Gallaudet, funda em Washington(EUA), a primeira Faculdade para surdos no mundo, o “National Deaf-Mute College”, atualmente Gallaudet University.
- 1880: 2° Congresso de Milão: proibição, por quase um século, do uso da língua de sinais. Somente a partir de 1971, volta a língua de sinais a ser reconhecida.
- Brasil(1855): Ernest Huet funda no Rio de Janeiro a primeira escola para surdos no Brasil, o INES- Instituto Nacional de Educação de Surdos.

3.Surdez: Conceitos e definições/ Tratamento
-Surdez é a incapacidade de o cérebro processar e decodificar, parcial ou totalmente, os estímulos sonoros enviados através do nervo auditivo, devido a falha no mecanismo de transmissão desses estímulos.
O êxito do tratamento psicológico do surdo estará sempre condicionado a inúmeras variáveis, tais como: condição socioeconômica da família, causa da surdez, estágio de aquisição (congênita, pré ou pós-lingual, senilidade), recursos de comunicação, patologias associadas, entre outras.
Em centros especializados já existe a possibilidade de implante coclear, nos casos em que não há lesão definitiva do nervo auditivo. O implante amplifica os sinais sonoros, permitindo identificar sons exteriores.


4 Língua de sinais: Características
-Alfabeto manual(datilologia): usado para expressar nomes de pessoas, lugares e outras palavras que não possuem sinais -Verbos: são apresentados no infinitivo.
-Pronomes pessoais: são representados por apontação -Preposições e conjunções são omitidas em Libras.
-Ordem da frase: A ordem frasal geralmente obedece à estrutura da Libras(SOV) e não à do português(SVO), podendo o verbo ser omitido. Ex.: Eu filhos sete(SOV)-(Eu tenho sete filhos).
-Expressões faciais e/ou corporais: fundamentais para o entendimento real do sinal, pois a entonação em Libras é feita pela expressão facial.
As linguais de sinais não são universais. Libras no Brasil e ASL(American Sign Language) nos Estados Unidos.



5.Psicologia da surdez?
O psiquismo do surdo é diferente do psiquismo do ouvinte?
A abordagem da surdez como patologia tem resultado em tentativas médico-clínicas de “cura” da surdez
Nos últimos anos, já é possível falar em “psicologia da surdez”, considerando que o surdo possui uma língua natural própria, com todas as características da língua falada. A pergunta que se impõe então é:
A mente(psiquismo) do surdo é diferente da do ouvinte?
Minha experiência como psicoterapeuta de surdos não indica diferença qualitativa ou estrutural, mas ruídos, que obstruem o fluxo da comunicação.
A pessoa surda, com exceção dos casos em que há seqüelas psiconeurológicas, decorrentes de traumas físicos ou doenças sistêmicas, é capaz de ter um desenvolvimento cognitivo compatível, e de aprender habilidades como qualquer ouvinte.

5.1 Estudo de Casos
Caso 1. R.C.S , 27 anos, solteiro, surdez congênita, bilateral profunda, com histórico de transtorno bipolar, depressão e agressividade. Aos 12 anos foi flagrado tentando colocar veneno de rato na caixa d`água de sua casa. Aos 18, apresentou o primeiro surto maníaco-depressivo. Não se comunica em Libras e, segundo a mãe, entende apenas alguns gestos dela. Na primeira sessão reagiu negativamente a qualquer forma de comunicação( gestual, labial, mágicas), mantendo-se em posição quase fetal. A partir da segunda sessão, foi colocado diante dele papel e material de desenho. De iniciativa própria, pegou as canetas e começou a desenhar(ver figuras abaixo, mostrando a dinâmica de relacionamento com a mãe). Além do trabalho terapêutico individual, foi prestada orientação à mãe quanto ao relacionamento com o filho, principalmente no sentido de ambos aprenderem Libras.




Desenho feito por RCS

Desenho feito por RCS








Caso 2
L.L.D, 25 anos, solteira, surdez congênita, bilateral, severa a profunda, estudante de Pedagogia, oralizada, leitura labial, usa prótese auditiva, histórico de depressão, distúrbios gástricos constantes, insônia, sexualidade exacerbada, dificuldade de relacionamento afetivo, baixa auto-estima. Atendimento realizado com comunicação total(Libras + Português falado e escrito). Os procedimentos terapêuticos enfatizaram a organização do pensamento e da informação, a partir de novos conceitos e percepções. Cl. conseguiu superar a maior parte de suas dificuldades, trabalha atualmente como professora de crianças surdas e está concluindo o curso de pedagogia. Diz que deseja se tornar psicóloga para ajudar outros surdos.



Caso 3
M.C.C, 11 anos, surdez congênita, bilateral profunda, paralisia cerebral, com seqüelas motoras. Enurese noturna. Desenvolvimento cognitivo compatível com a idade. Capaz de se comunicar em Libras. Estudante da 2ª série, 1° grau, com histórico de repetência, agressividade na escola, falta de concentração. Apresentou resistência no início do atendimento, mas adaptou-se rapidamente, demonstrando motivação e interesse pela informática e artes(pintura). Foi realizado trabalho conjunto com a equipe escolar, onde foram detectados problemas nas relações em sala de aula. Atualmente apresenta melhora no relacionamento na escola e boa interação social.

Caso 4
F. B., 12 anos, surdez congênita, bilateral profunda, com histórico de depressão profunda, isolamento, fobias, incapaz de comunicar-se em Libras, tendo passado por várias avaliações diagnósticas, com indicações de autismo, retardo mental, e incapacidade de relacionamento. Somente aos 11 anos foi diagnosticada a surdez, e foi encaminhado por fonoaudióloga para tratamento psicológico, por ser inacessível àquele atendimento. Recusou-se a participar do atendimento inicialmente, mas na segunda sessão aceitou entrar no consultório. Interessou-se pelas mágicas e pelo computador. Foi estimulado, juntamente com a família, a aprender Libras e a matricular-se em escola especial da rede pública. Atualmente estuda na 1ª série/1° grau, já é capaz de navegar na Internet, mesmo sem conhecer Português.



Caso 5
I.G.G, 12 anos, surdez bilateral profunda, provocada por meningite aos 2 anos e 7 meses, sofrendo quadro de coma, convulsões e distúrbios do sono. Enurese noturna. Apresenta seqüelas motoras e comportamentos estereotipados. Usa prótese auditiva e não conhece Libras. Testes de grafismo e de aptidões e habilidades revelam tendência a repetição de padrões e falta de iniciativa. Cl. aceita bem o tratamento, que está enfatizando mudanças de rotina e de hábitos/condicionamentos, com vistas a estimular a criatividade e melhorar o desempenho cognitivo e a aprendizagem. A família está sendo orientada no sentido de não reforçar condutas infantis e de dependência.



Caso 6
J.E.B, 23 anos, surdez congênita, bilateral profunda, usa prótese auditiva, oralizado a partir dos 7 anos, domina perfeitamente Libras e faz leitura labial. Quadro de depressão, fadiga física e mental, tiques nervosos, insônia e constantes dores de cabeça, somatizações. Fluência em Português escrito e falado, e apresenta desenvolvimento cognitivo acima da média. Casou recentemente com uma ouvinte, trabalha como programador de informática, está concluindo Curso de Informática, nível superior. De tempos em tempos entra em depressão e reclama da volta de alguns sintomas. Diz que seu desconforto é viver na fronteira entre dois mundos: dos surdos e dos ouvintes.


6.SURDOCEGUEIRA
A surdocegueira( surdez asssociada à cegueira), se inclui, de modo geral, na categoria de deficiências múltiplas, pois quase sempre vem acompanhada de outras patologias.
As limitações impostas por essa deficiência provocam grande sofrimento psicológico, resultando em isolamento social e relacional e, se não tratada adequadamente, pode levar à total incapacidade do indivíduo.
Até pouco tempo considerada como inacessível a qualquer abordagem psicoterapêutica, a surdocegueira é atualmente objeto de atendimento, em caráter experimental, na Apada-DF e na Associação dos Surdos de Uberaba-MG.
Hellen Keller: exemplo de que nada é impossível.




7.TÉCNICAS E PROCEDIMENTOS PSICOTERAPÊUTICOS
-Entrevista inicial(ANAMNESE), com a presença de um dos responsáveis(geralmente a mãe)
-Grafismo
-Mágicas e brincadeiras
-Acesso ao computador(softers especiais, que permitem diversão e, ao mesmo tempo, observação de padrões comportamentais, coordenação motora, níveis de frustração/ agressividade, desenvolvimento cognitivo e outras habilidades/aptidões)
-Escuta. O surdo é “tagarela”, gosta de desabafar, repetindo no início as mesmas histórias. A intervenção do terapeuta ocorre no estágio de “fadiga” do discurso, quando então ele se torna receptivo.
-Informação pedagógica. Conceitos e informações práticas, para o auto-conhecimento e compreensão do mundo, com vistas a melhor comunicação e interpretação dos conteúdos trazidos durante a terapia.

8.Psicanálise e Surdez
Enquanto a psicologia busca explicações teóricas sustentadas por validação científica, visando estabelecer regras gerais de comportamento, a psicanálise lida com o processo de alteridade, no sentido de que o sujeito se constitui a partir das relações com o Outro. O sujeito é capturado pelo desejo do Outro. Enquanto as abordagens psicológicas pressupõem a existência de um eu, de uma pessoa, desde o início, Lacan defende que a princípio o sujeito existe colado ao Outro.
Pelo olhar psicanalítico, sujeito, Eu e identidade são processos distintos. Para Lacan um sujeito não é um ser na fala(língua de sinais e língua oral), mas é sempre um vir a ser, e não um é , tal como propõe a psicologia e a pedagogia.
Para que o sujeito se constitua como identidade é preciso que ele se descole do desejo do Outro.


8.1. Psicanálise de surdos: uma possibilidade?
Esta é uma questão que merece profunda reflexão, seja pela diferença de abordagem em relação às terapias convencionais, ou pela complexidade de manifestação da surdez, conforme vimos anteriormente.
Mas nosso olhar é otimista, pois os trabalhos, embora raros, que já vêm sendo realizados por psicanalistas nessa área de atendimento clínico, constituem, sem dúvida alguma, contribuição inquestionável para a compreensão da pessoa surda. Certamente a prática psicanalítica no atendimento do surdo revelará novos horizontes, propiciando não apenas o aprofundamento e resgate do conteúdo do inconsciente, mas também contribuirá para um modelo pedagógico e educacional mais abrangente e dinâmico.

LEITURAS SUGERIDAS
- Sacks, O. Ouvindo Vozes. São Paulo. Companhia das Letras, 1998
- Bernardino, E.L. Absurdo ou Lógica-Os surdos e sua produção lingüística. Belo Horizonte. Ed.Profetizando VIDA, 2000
- Lacerda, B.F.L e Góes, M.C.R(Org). Surdez-processos educativos e subjetividade. São Paulo. Lovise, 2000
- Gotti, M. Português para Deficientes Auditivos. Brasília. Edunb, 1998
- Strnadová, V. Como é ser surdo?. Petrópolis. Babel Ed., 2000

LEITURAS SUGERIDAS (continuação)
- Almeida, E.D.C. Leitura e Surdez-um estudo com adultos não oralizados. Rio de Janeiro. Levinter, 2000
- Goldgrub, F. W. A Máquina do Fantasma-Aquisição de linguagem e constituição do sujeito. Ed. UNIMEP, 2001
- Keller, H. História de minha vida. São Paulo. Ed. Waldorf, 2001
- Silva, R.C.J. Educação dos surdos: aspectos históricos e institucionais. Monografia. Brasília, Unb, 2001
- Mrech, L.M. Um olhar psicanalítico a respeito da questão da identidade do surdo. Conferência-VI Seminário Nacional do INES, Rio de Janeiro, 2001
- Sole, M.C.P. A Clínica Psicanalítica em Língua de Sinais: algumas reflexões de uma analista ouvinte sobre esta prática. www.truenet.com.br/html/psicanálise e surdez.htm
- Brito, L.F. Estrutura Lingüística da Libras, in Introdução à Língua Brasileira de Sinais, Apada/DF, 2002